quarta-feira, 30 de abril de 2014

Shaper dos 'famosos' revela os segredos da arte de fazer pranchas

Marcelo Rodrigues shaper  (Foto: Viviane Leão/GLOBOESPORTE.COM)
Marcelo Rodrigues já exerce a profissão há 17 anos
(Foto: Viviane Leão/GLOBOESPORTE.COM)

Flutuar sobre ondas perfeitas, deslizar em salões de águas cristalinas, sentir a baforada da espuma no rosto, contemplar os mais esplendorosos momentos de camarote. Momentos sublimes que somente um real surfista pode experimentar. Viver o ápice da adrenalina, enquanto absorve todo a magia que o esporte oferece, é para os que têm coragem.

As melhores experiências de um surfista passa por ela. Ela está presente nos melhores, e piores momentos. Ela é companheira, ela é fiel, é responsável por todos os momentos mágicos. O que seria de um surfista sem a prancha? Ela é o elo entre o praticante e o oceano.

Inicialmente pesada, grossa, de madeira, os pranchões havaianos quebravam um galho. Era neles que os piorneiros do surfe executavam seus primeiros drops. Depois os pranchões foram evoluindo, novos materiais foram incorporados. Cores, muitas cores. Década de 1960 na Califórnia o surfe era explosão, as pranchas podiam ser vistas por toda parte. O tempo foi passando, a tecnologia foi sendo aprimorada e as pranchas foram tomando novo corpo: shortboards, funboard, fish, e longboards novamente. Os famosos pranchões voltaram ao topo da onda, mais refinados, mais leves e mais manobráveis. Os modelos foram se ampliando, assim como a técnica, que incorporada à tecnologia foi oferecendo aos criadores de pranchas mais opções e pinturas.

Nascendo um shaper

"Surfista mesmo surfa com a onda. Ele conhece a onda, ele sabe onde ela quebra, ele sabe o melhor lugar para se estar, e ele vai com ela", disse certa vez o shaper Chandler, personagem do famoso filme norte-americano North Shore (Surfe no Havaí, de 1987), e que ganhou vida com a interpretação de Gregory Harrison na telinha. O shaper alagoano Marcelo Rodrigues, de 36 anos, também compartilha da filosofia de Chandler, ele acredita que um shaper precisa saber surfar e conhecer a onda para, assim, capturar a verdadeira essência do surfe e traduzir tudo isso nas pranchas: "O cara para fazer pranchas primeiro tem que ser surfista, ele tem que saber sentir a onda, ele tem que captar o feeling, para só depois pensar em criar pranchas", disse.

Marcelinho, como é conhecido pelos amigos, faz pranchas há 17 anos. Pode-se dizer que ele é um desses surfistas de alma, que vive e respira o surfe. Ele nasceu no berço do esporte e se mantém nele vivo até hoje, construindo e disseminando suas criações artísticas mundo afora. Surfistas como Fernando Fanta, James Santos, Fábio Gouveia, Bernardo Pigmeu e Fábio Nunes, já usaram alguns dos seus foguetes. O GloboEsporte.com foi até a fábrica de pranchas do shaper e conversou com ele, que falou da transição das pranchas durante as décadas, contou como se dá o processe de criação e deu dicas de como preservar as pranchas.

O shaper alagoano se inspira nas ondas para criar suas pranchas (Foto: Arquivo pessoal/Marcelo Rodrigues)

GloboEsporte.com: como foi feito esse primeiro contato com a arte de shapear pranchas?

Marcelo Rodrigues: Foi amor à primeira vista. O primeiro contato foi através do meu irmão, Marcos Rodrigues. Foi através dele que comecei a me envolver com o surfe. Com sete anos, eu descobri o que era o surfar de fato, aos 11 já trabalhava com pranchas e aos 17 shapeava. Foi através do Marcos que eu comecei a shapear.

O que lhe motivou a se tornar shaper e fazer disso uma profissão?

Antigamente os tipos de pranchas eram diferentes, eram aquelas pranchas retas, feias, sem curva, e eu não gostava. E eu queria aprender a shapear para dar forma melhor às pranchas. Eu peguei o começo da década de 80, e foi justamente no momento da transição do modo como se fazia prancha. Foi um desafio shapear com mais curva, mas aí eu comecei a trabalhar com resina, foi um aprendizado muito grande, até hoje eu uso, trabalhar com a catalização, resina, cortar o tecido. Sem dúvida, shapear prancha foi paixão à primeira vista.

A marca MR Surfboards é referência em Alagoas
(Foto: Viviane Leão/GLOBOESPORTE.COM)

E como foi que nasceu o estilo Marcelo Rodrigues?

Como eu falei, eu peguei esse momento da transição, as pranchas ficaram mais modernas, mais rápidas, e o meu estilo foi ficando mais radical, um pouco diferente do meu irmão. O surfe sempre esteve incorporado em mim, direta e indiretamente, então absorvi muito do surfe, acredito que as duas coisas se completam. Não dá para ser um bom shaper se você não surfa. Os estudos também contribuíram muito para a minha formação, eu estudei na escola técnica, então muitas das minhas matérias como física, metrologia, me auxiliaram na construção de pranchas. Entender como funciona toda a mecânica por trás de tudo é muito importante.

Há algumas décadas as pranchas eram feitas manualmente, ainda hoje existe os mais puristas que acreditam que a elaboração de forma artesanal é o modo correto, no entanto, a tecnologia passou a ser um divisor de águas na forma como se fabrica prancha. Para você, a tecnologia é uma aliada ou atua mais como vilã?

Com o tempo, a tecnologia foi fazendo parte do mundo do shaper e isso não podemos negar. Acredito que a tecnologia veio para ajudar, tanto o fabricante, quanto o surfista. A tecnologia tem o seu lado positivo. É verdade que até hoje existe o trabalho de prancha artesanal, aquele que você pega o bloco bruto, mas para você seguir uma linha padrão de criação, a tecnologia, nesse sentido, ajuda muito. Por exemplo, você consegue recriar o mesmo modelo de prancha várias vezes. De forma artesanal você não consegue shapear cinco pranchas em um só dia na mão. Existe um programa computadorizado que se chama DSD, e tem até um mais avançado que é o 3D, que te possibilita shapear até dez pranchas em um só dia. Otimiza o trabalho, você consegue atingir o nível das pranchas no mesmo patamar, na mesma linha.

Algumas das criações de Marcelo Rodrigues (Foto: MR Surfboards)

O que mudou com a tecnologia? E como é feita a sua produção de pranchas?

Antigamente as pranchas eram muito grosas, pesadas, hoje já é diferente, as máquinas conseguem refinar, deixar elas mais leves, mais finas. Hoje eu produzo em média três pranchas por dia. Acho que é legal você não estender tanto, até porque eu não tenho uma produção em grande escala, eu trabalho direto com o surfista. Ele vem encomendar, é personal. Eu sempre trabalhei dessa forma. E tem também o feedback, que é essencial. Muitas vezes lá fora, o surfista não consegue conversar com o shaper, tem aquela relação um pouco fria. Então, eu tento priorizar esse contato direto com o surfista, produzindo para ele uma prancha que se adeque à sua realidade.

Que conselho você daria para o surfista que quer comprar uma prancha em uma surfshop?

Ele tem que chegar na loja, ele tem que saber que prancha está comprando, tem que pesquisar antes sobre a marca, e perguntar ao vendedor, pois ele tem o treinamento do fabricante, é ele quem dará a melhor indicação. Seria legal também o surfista entrar em contato com o fabricante, seja por e-mail, seja através das redes sociais. O importante é fazer esse meio-campo.

Cleber Morais, Marcelo e Duda, uma lenda do surfe
alagoano (Foto: Viviane Leão/GLOBOESPORTE)

Tem algum segredo para fazer a prancha durar mais tempo?

Primeiro, a prancha pintada não queima, ela dura mais tempo. Prancha não pode ir para o sol. O sol é inimigo de prancha. Cores fortes costumam esquentar mais também. Após o surfe é sempre bom lavar a prancha em água doce. Na realidade a água salgada não vai danificar a prancha não, vai ser mais o deck, a cordinha. Deixar a prancha dentro do carro também é muito ruim. E cuidar sempre para não bater, pois prancha é algo frágil.

Em quem ou em que você busca inspiração para fazer suas pranchas?

O Al Merrick é um dos que me inspira. Me inspiro muito no trabalho dele, é um cara muito inteligente, ligado nas teorias. Um vez eu li uma entrevista onde ele falou que divide a prancha em bico, meio e rabeta, ele pensa o que significa o funcionamento de cada uma das partes, e depois ele começa a unir tudo, e vai montando os modelos das pranchas. Ele é um shaper antigo, muitos surfistas renomados já surfaram com as pranchas dele. Procuro me inspirar nas coisas boas. É uma relação espiritual. É muito do momento que você está, se você está em um dia inspirado, fez aquele surfe, aí você entra na sala com aquela energia boa, é quando se cria uma prancha mágica. E tem surfista que valoriza isso, que nota como você vive, como você surfa, como você trabalha, que percebe que você ama o que você faz, que você bota sua alma naquilo. Lá fora eles valorizam muito isso. Tem esse lado genuíno da parada.

Onze vezes campeão do mundo, Kelly Slater, usa a prancha do Al Merrick (Foto: EFE)

Você falou do lado genuíno, mas também existe o lado mercadológico...

É como eu falei, tem o cara que ama o que faz, e tem o que só visa à grana, colocar prancha no mercado e ganhar o dinheiro. A máquina na atualidade tem essa desvantagem, você pode comprar o soft e pode shapear sem nunca ter riscado ou tocado a mão no bloco. Você pode aprender a fazer prancha no computador, fazer o designer e se passar por um shaper, sem ser...

Quem hoje usa suas pranchas?

Graças a Deus hoje eu tenho um público que quando pensa em fazer prancha, me procura. Tem surfistas espalhados no Brasil e no mundo que usam as minhas pranchas. Tem o Fábio Gouveia, Binho Nunes (Fábio Nunes), James Santos, Marcondes Rocha, Armando Daltro, Bernardo Pigmeu e o Fernando Fanta.

Fernando Fanta usa as pranchas de Marcelo
(Foto: Osvaldo PoK)

O Fanta é um excelente surfista e que me inspira muito para shapear. Para mim ele é o cara que faz as curvas mais bonitas em uma onda, a linha mais bonita de surfe do Brasil é dele. E acaba sendo uma satisfação muito grande porque eu sinto quando o surfista valoriza o meu trabalho, e quando eu vejo que ele valoriza, eu faço de corpo e alma, boto meu coração. E é um prestígio grande ver o surfista pegando onda com a minha prancha, fazendo aquelas curvas, e eu fico analisando tudo e sempre tentando melhorar.

Você também fabrica pranchas de Stand Up Paddle, como é feito esse trabalho? Tem muita diferença na criação de uma prancha de surfe para um SUP?

Foi através de um amigo meu da Bahia, Pitolomeu. No começo não me interessei muito, era bem diferente. Inicialmente eu ignorei a ideia de fazer SUP, mas aí o Pitolomeu me disse: “Cara, invista nisso, o Stand Up é o futuro”. De uns dois anos para cá que venho fazendo, e agora não tem mais segredo. E é mais fácil do que prancha de surfe, prancha de surfe é muito mais complexa, quanto menor a prancha mais difícil é de se fazer.

Suas pranchas custam em média quanto? Dá para viver do surfe? Em Alagoas a profissão é reconhecida?

Aqui você encontra prancha de surfe a partir de R$ 750,00, já as de Stand Up Paddle custam em média R$ 3 mil, ela completa, com remo. Olha, hoje em dia eu vivo de shape. Em Alagoas a profissão é muito reconhecida. Hoje em dia eu posso dizer que eu tenho know-how, que minhas pranchas são boas, que eu tenho currículo. Eu saí daqui, fui morar em Florianópolis, fiz o meu nome lá, quando vim para cá já tinha a minha marca reconhecida. Hoje eu vivo bem, e posso dizer que vivo só de surfe.

Marcelo mostra suas pranchas de SUP
(Foto: MR Surfboards)

Se você pudesse dar uma dica para os aspirantes a shaper, qual seria ela?

Para ser shaper você primeiro tem que contratar, se possível, um shaper para te dar aulas, porque você vai ver toda a parte teórica desde o início. E para ser shaper não adianta só mexer na máquina e dizer que é shaper, porque vai ter uma hora que os caras vão querer exigir de você e você não vai ter de onde tirar teoria. Tem quer ter vontade, tem que gostar da coisa. A profissão de shaper não é fácil, o cara que quer ser shaper tem que saber que ele vai trabalhar muito.

A fábrica de prancha do Marcelo fica na Praia do Francês, Marechal Deodoro, Litoral Sul de Alagoas.

FONTE: globoesporte.

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