terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Lado B da Copa: Fifa não reconhece país e divide irmãos fugitivos de guerra



Mesmos pais, mesmo sobrenome, mesmo local de nascimento, mesma fuga de guerra. Jogadores profissionais de futebol, os irmãos Taulant e Granit Xhaka viverão situações diferentes durante a Copa do Mundo: um vai jogá-la pela Suíça, o outro, no máximo, estará no Brasil para assistir aos jogos como espectador.

Declaradamente, os irmãos prefeririam defender, juntos, seu país de origem e brigar por um lugar no Mundial, mas não podem. Pelo menos por enquanto. E tudo por um detalhe político: a Fifa não reconhece a independência de Kosovo. Logo, a nação não tem como disputar jogos oficiais, incluindo-se aí as eliminatórias europeias.

"Sim, claro", respondeu Granit, nascido em Gnjilane e volante de 21 anos do alemão Borussia Monchengladbach, nas diversas vezes em que foi questionado se atuaria por Kosovo. Taulant,18 meses mais velho, nascido em Pristina e também volante, mas do Basel, da Suíça, tem resposta idêntica para a mesma pergunta.

Sobre o posicionamento da Fifa? É algo protocolar. A entidade que comanda o futebol mundial, assim como a Uefa, só aceita um novo membro se houver a chancela da Organização das Nações Unidas (ONU), que, por sua vez, não reconhece o território que já fez parte da antiga Iugoslávia porque seu Conselho de Segurança não aprova a questão.

Neste tipo de assunto, é preciso unanimidade entre os cinco membros permanentes do órgão, mas Rússia e China vetam a aceitação. Outros integrantes do G-5, Estados Unidos, França e Reino Unido reconhecem a soberania do Kosovo, que se autodeclarou independente da Sérvia em 17 de fevereiro de 2008.

Na prática, não faria diferença, mas a nação que recebe a Copa corrobora as posições de Rússia e China. "O Brasil não reconhece a independência porque existe uma resolução da ONU que diz que a Sérvia negocia com o Kosovo a respeito da situação naquele país, então, entendemos que esta situação está em andamento e esperamos uma definição entre as duas partes", informou ao ESPN.com.br o Ministério das Relações Exteriores.

Um equívoco da diplomacia nacional, segundo avaliação do professor de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) Marcus Vinícius de Freitas.

"Primeiro, o fato de um país não ser reconhecido por outro não quer dizer que ele deixe de existir. Na minha opinião, parece um erro [a posição do Brasil], porque estamos apoiando a posição da Rússia. Mas não podemos nos esquecer a cooperação dos BRICS, talvez seja por isso. Talvez o Brasil não tenha interesse em criar nenhum tipo de litígio ou de conflito com a Rússia", disse ao ESPN.com.br.

Getty Images
Granit Xhaka em ação pela seleção suíça

Fugitivos de guerra, 'traidor' e a opção pela Albânia
Assim como outras milhares de pessoas, pai e mãe Xhaka pegaram os filhos Granit e Taulant e fugiram do Kosovo para a Suíça na segunda metade dos anos 1990. Motivo? A guerra (leia e entenda mais abaixo) pós-desintegração da Iugoslávia que tomava o local, cuja população era formada em 90% por cidadãos de origem albanesa e apenas 10% de origem sérvia.

Já no novo país e longe das bombas, os garotos cresceram, ganharam nova cidadania e tornaram-se jogadores. Ambos começaram no Basel. Granit ganhou mais projeção internacional que Taulant e foi comprado por 8,5 milhões de euros pelo Gladbach em maio de 2012 - os dois são titulares absolutos em seus times.

A dupla fez parte de todas as seleções suíças de base, até a sub-21. Então, era hora de tomar decisões. E as escolhas distintas selaram o destino dos irmãos no que diz respeito à participação na Copa do Mundo, ao menos na de 2014.

Granit optou pela Suíça. Virou peça-chave na seleção treinada pelo alemão Ottmar Hitzfeld - o mesmo que reclamou por ter de jogar o Mundial "na selva" em Manaus -, fez parte da campanha que valeu, com sobras (foram oito pontos de vantagem sobre a segunda colocada, a Islândia), o primeiro lugar do grupo E e a consequente classificação direta para o Mundial.

Mas a escolha também lhe rendeu críticas. Na Albânia, muitos não concordaram com a opção e passaram a chamar Granit, que poderia ter escolhido defender o país de sua origem, de "traidor". Ele rebateu dizendo que a federação de futebol local não se esforçou para tê-lo, como, segundo ele, fez a suíça.

Em outubro de 2013, Granit Xhaka teve de voltar a falar sobre o assunto por conta do duelo Suíça x Albânia pelas eliminatórias europeias. "Será o jogo mais emocionante da minha carreira... Muitos albaneses são contra nós [jogadores de origem albanesa que defendem a Suíça], nos chamam de traidores, mas outros têm orgulho de nós", disse à época

E Taulant? O mais velho dos irmãos Xhaka prorrogou, por ouvir seu coração ou por não desfrutar com Hitzfeld do mesmo glamour que tinha nas seleções de base da Suíça, a definição sobre qual país defender.

Desta vez, a federação albanesa se movimentou, e até o presidente da nação, Bujar Nixhani, trabalhou em prol de um decreto que tornou possível a convocação a partir do final de 2013 de Taulant pela Albânia. Não ganhará, por lá, o status de "traidor" dado a seu irmão.

Ambos, no entanto, mantêm o desejo de defender sua terra natal, Kosovo, o que poderá ocorrer em breve: a Fifa, em decisão tomada nos primeiros dias de 2014, liberou, ainda que sob uma série de critérios, seus filiados a jogarem amistosos contra o país que não reconhece.

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Shaqiri, do Bayern, com bandeira meio-kosovar, meio-suíça

Suíça com cara albanesa?
Granit Xhaka não é exceção na atual seleção suíça. O time de Ottmar Hitzfeld tira proveito também de pelo menos outros quatro jogadores de origem albanesa, dois deles também nascidos no Kosovo: os meias Valon Behrami, do Napoli, da Itália, e Xherdan Shaqiri, do Bayern de Munique, da Alemanha.

A outra dupla é da Macedônia, país que também formava a antiga Iugoslávia e que foi o terceiro a declarar independência: Blerim Dzemaili, meia do Napoli, da Itália, e Admir Mehmedi, atacante do Freiburg, da Alemanha.

Uma possível debandada dos kosovares em caso de reconhecimento de seu país pela Fifa pode afetar a seleção suíça, como mostrou reportagem do ESPN.com.br em agosto de 2013, por conta do amistoso contra a seleção brasileira.

Entenda a guerra que atingiu os irmãos Xhaka
Com a queda do muro de Berlim, na Alemanha, em 1989, e o consequente enfraquecimento do socialismo, a Iugoslávia, uma república formada por federações socialistas, começou a desintegrar-se em junho de 1991, quando Eslovênia e Croácia declararam independência. Na sequência, Macedônia e Bósnia e Herzegovina fizeram o mesmo.

Getty
Soldados de Kosovo fazem buscas em meio a destroços da guerra

Na divisão, Sérvia e Montenegro, que mais tarde se separariam, formaram o que sobrou da Iugoslávia, que continuava a dominar a região do Kosovo - onde nasceram os irmãos Xhaka -, que tinha 90% de seus cidadãos de origem étnica albanesa e os 10% restantes de origem sérvia. Uma guerrilha com membros da maioria formou-se na tentativa de independência. E então, houve guerra.

O conflito entre 1996 e 1999 se deu entre forças de segurança iugoslavas, sob o comando do presidente nacionalista Slobodan Milosevic, e o Exército de Libertação do Kosovo (ELK).

Uma reunião em fevereiro de 1999, na França, mediada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) tentou acabar com a guerra, mas fracassou. Assim, a organização militar que reúne vários países, como Alemanha, Estados Unidos e França, decidiu atacar a Iugoslávia e o fez pela primeira vez em 24 de Março.

Após 79 dias de bombardeios, em 3 de junho, líderes dos países ocidentais e Milosevic chegaram a um denominador comum para pôr fim ao conflito. Em 10 de junho, a cúpula militar da Iugoslávia assinou o acordo para encerrar a guerra, e foi instaurado um governo provisório em Kosovo, sob tutela da ONU. O país declarou independência em 17 de fevereiro de 2008.

A seção Lado B da Copa tem como objetivo contar histórias ligadas ao Mundial que ultrapassam os limites do campo e da bola e terá 18 edições, sempre com uma novidade a cada terça-feira até 10 de junho, a dois dias da abertura da Copa.

FONTE: ESPN

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